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Folhas partidas
Saturday, October 09, 2004
 
Preferiria acreditar que eles não seriam capazes de nada além das costumeiras chacotas. Julgava-os apenas crianças. Crianças más, é verdade. Mas apenas crianças. Recusava-me a crer que pudessem fazer algum mal ‘a minha mulher, ainda mais estando acompanhada por nossa filhinha. Não, não eram gente assim hedionda. Mas havia mais de três horas que ela saíra para comprar mantimentos. De nossa casa, na encosta do monte, até o vilarejo, não passava de uma hora de carroça e outro tanto pra voltar. Os trovões anunciavam a tempestade. Larguei o machado que brandia e limpei as mãos no brim grosso da calça. Entrei em nossa pequena habitação. Não, nada havia acontecido. Mas ia começar a chover forte. Na verdade, com o frio que fazia, era possível que nevasse. O vento varria em rodamoinhos.

Quando entrei em casa, vi pela janela que dava para leste a vermelhidão do céu. Do outro lado, nuvens espessas cobriam o monte. Como era então possível aquela luz rubra entrando por meus olhos, vinda do firmamento? O crepúsculo, contudo, era sombrio. As nuvens que pairavam, baixas, estavam carregadas de estranha opressão. Saí. Não se via um palmo ‘a frente. A noite descia ameaçadora. Precisava ir ‘a cidade. Não que tivesse acontecido alguma coisa com sua mulher e filha. Elas estariam protegidas na casa de Marcel. Ninguém na cidade seria capaz de lhes fazer mal. Não precisava me inquietar. Devia apenas ir encontra-las pois talvez precisassem de mim para acomodar as coisas na carroça. E elas não haviam levado agasalho. Fazia muito frio.

Havia sido um ano difícil, pensava, enquanto subia na moto. E julho era um mês especialmente árduo para os homens da montanha. O tempo das primeiras nevascas. Comecei a sentir os pingos da chuva. Gostava do cheiro da chuva na terra; mas, naquele momento, respirei-o como se fora enxofre. Uma insuportável angústia me enchia o espírito. A voz do vento soava severa e gelada. Contemplava o que podia vislumbrar além do monte e discerni a estranha coloração do horizonte. Ondas de fumaça eram trazidas pelos círculos. O cheiro do fogo substituiu o cheiro da chuva e envolveu minhas recordações.

 
Thursday, October 07, 2004
 
Ouço um trem. Uma buzina. Outra. Vozes. Passam pelas calçadas. Só quem, sendo uma alma morbidamente susceptível, sofreu a miséria, saberá o que seja a pressão a que se é submetido quando não se faz parte do jogo, as humilhações dolorosas e as alegrias potencializadas de um subterrrâneo. Eu, porém, sou no fundo absurdamente normal, e de dura cerviz. Mas sofro, de um jeito ou de outro. Só quem vivencia realidade semelhante poderá imaginar o quanto eu sofro.


Não era assim após "Julia e Julia", o filme que vi antes de partir de Madrid. Pelo contrário. Estava então sereno, cheio de esperança. Encaminhei-me, com postura e respiração de peito, para um ronda que me deixasse na zona das sopas e vinho, pronto a entrar na taverna mais barata, entra a Porta do Sol e a Praça Maior. Passando por uma banca de jornais, bati o olho num postal sem foto, apenas uma plastficação negra de cartão, espelhando a lâmpada do poste. "Noche. Madrid". Sorri. Comprei. Virei-me e devo ter dado uns cinco passos. Um rapaz me pediu um cigarro. Depois de acendê-lo, propôs-me um chocolate. Dialeto dos fumadores de THC. Maconha, cabonha, ganza, erva, hashis, haxixe, kaia, liamba, joint, pito, porro, charro, chá, chamón - o ficionado sabe que são pinturas diferentes de uma mesma porta, para um mesmno lugar, independe o efeito do nome. "Chocolate", agora: o carimbo do passaporte para a fronteira. Se eu deveria ou não ultrapassá-la, er aum outro, velho e complexo problema no qual eu podia me dar ao luxo de me deter então - o mundo passa, e seus mistérios. O que eu loucamente necessitava era não de droga mas de interlocutor, e a erva sempre se prontificava, sem as cobranças do amigo e - principalmente - da amiga humanos.


Assim que lhe dei o dinheiro da minha parte, o rapaz foi ter com um vulto na transversal da avenida onde estávamos, do outro lado da rua, sem dizer palavra. Voltou e fomos andando enquanto ele preparava o cigarro. O rapaz, Michel, suíço, pronunciava o espanhol tão corretamente quanto Sting no filme - ele pórem era real como minha alma dilacerada, inclusive cantando o "lhú" de lluvia (começavaa chuviscar) e o "lhê"de calle (convidara-me para ir tomar a sopa num clube noturno e agora me explicava o caminho), diferentemente dos latinos americanos, que davam aos dos eles som de jota. No percurso, pelo cheiro, juntaram-se a no's um italiano e um português. Eu ouvira falar, em Paris, Roma e Lisboa, acerca de Amsterdan, auge dessa europa paralela, a verdadeiramente una, subterrânea; saberia depois o quanto fazia parte do esquema vigente, mas agora estava iludido. Desde o Brasil pensando em mim sobre um bicicleta indo na direção de Den Haag Utrecht, contra o vento aberto no percurso de casinhas ajardinadas e tetos graciosos, à semelhança das casas de boneca. Possivelmente, nunca iria conhece-lo.
 
blog de Ricardo de Almeida Rocha Este ano: ricardr - rocha on the horizont mail: Ricardo

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